O papel dos biocombustíveis na transição energética – Parte II

Por Carlos Corrêa |


Os resíduos de biomassa como fonte de riqueza

A utilização de etanol como combustível para automóveis não é um tema recente. Já se estudava o uso desse biocombustível desde o surgimento dos primeiros automóveis, entre as décadas de 1910 e 1930. O famoso Modelo T da Ford, por exemplo, em suas primeiras versões, já previa ajustes para que fosse abastecido tanto com gasolina quanto com etanol. Entretanto, o crescimento da indústria do petróleo, o desenvolvimento tecnológico e o aumento das escalas de produção da gasolina e do óleo diesel, fizeram com que os derivados do petróleo dominassem o mercado de forma incontestável nas décadas seguintes.

A partir dos anos 1970, os fortes aumentos nos preços do de petróleo trouxeram sérias consequências econômicas globais, principalmente para países altamente dependentes das importações de derivados de petróleo. Como resposta a essa tendência de aumento de preços, países como Brasil e Estados Unidos passaram a incentivar o aumento da produção de etanol como substituto à gasolina, de forma a reduzir sua dependência energética. Através de fortes ações governamentais, esses dois países conseguiram dar um enorme impulso a diversas iniciativas públicas e privadas que transformariam o etanol no biocombustível mais consumido no mundo. Outro fator determinante para o aumento na produção de etanol foi a introdução dos carros flex no Brasil, a partir de 2003. Em 2005, as vendas de carros flex no Brasil já estavam acima de 80% do total de veículos novos comercializados, alcançando quase 90% do total das vendas já em 2015. Atualmente Estados Unidos e Brasil são os maiores produtores e também os maiores consumidores de etanol. Os Estados Unidos produzem etanol a partir do milho enquanto o Brasil, que usava principalmente a cana-de-açúcar, agora também já produz etanol a partir do milho.

Os crescentes aumentos nos volumes de produção de etanol trouxeram consigo preocupações, principalmente na Europa, sobre o uso da terra, da água, de fertilizantes agroquímicos e quais seriam seus impactos sobre a produção de alimentos e sobre toda a cadeia agrícola, com destaque para os riscos de falhas no abastecimento global de alimentos. Daí a necessidade de se desenvolver a produção do biocombustível a partir de matérias-primas alternativas que não competissem com a produção de alimentos nem com o uso da terra. Entre diversas fontes estudadas, a biomassa agroflorestal residual (resíduos agroflorestais), surge com potencial para suprir não apenas a demanda crescente de produção de etanol, mas também alimentar a indústria de geração de energia elétrica, através de processos altamente eficiências. Biomassas agrícolas residuais são aqueles resíduos deixados no campo após a colheita, como: a palha ou o bagaço da cana-de-açúcar; talos, sabugos e palha do milho e palha do arroz ou da soja, entre outros. Biomassas florestais residuais são aqueles resíduos naturais das florestas, como: folhas, raspas, cascas e galhos, entre outros. Esses dois tipos somados formam as biomassas agroflorestais residuais. O etanol produzido a partir de biomassas agroflorestais residuais é o mesmo etanol produzido a partir da cana-de-açúcar e do milho, mas como é produzido a partir de uma nova tecnologia, passou a ser chamado de etanol de segunda geração. Apesar do novo nome, é o mesmo etanol que já abastece nossos veículos flex.

No Brasil, o consumo de biocombustíveis líquidos representa 20% do consumo energético total para transportes, mas no mundo esse valor ainda é de 4%, indicando um enorme potencial para crescimento. Segundo a Agência Internacional de Energia, a produção de biocombustíveis precisa triplicar até 2030 para que seja possível alcançar emissões líquidas zero de carbono até 2050.

O Brasil, atualmente, é o segundo maior produtor de etanol do mundo com 26% da produção global e fica atrás dos Estados Unidos, responsável por 46%. Considerando apenas a biomassa residual das lavouras de cana-de-açúcar é possível duplicar o volume de produção desse biocombustível sem nenhum aumento da área já plantada. Ou seja, apenas somando o volume potencial de etanol que pode ser produzido a partir de biomassa residual dos canaviais ao volume já produzido a partir da própria cana-de-açúcar e do milho, é possível alcançar a produção dos Estados Unidos.

Mas o potencial é muito maior!

O Brasil possui 60 milhões de hectares de terras dedicadas ao plantio, sendo menos de 20% dessa área são dedicados à cana-de-açúcar. Faz todo sentido acreditar na utilização de biomassas residuais agrícolas de outras lavouras (soja, milho, trigo, arroz etc.) abrindo uma enorme janela de oportunidades para a agroindústria nacional assumir a liderança na produção global de etanol. Isso sem considerar a biomassa florestal residual que ainda pode abrir mais um mundo de possibilidades.

Além de seu consumo em automóveis com motores à combustão, o etanol tem tudo para ser o combustível que alimentará também os carros elétricos. Sim! Etanol movendo carros elétricos!!

Uma tecnologia inovadora em desenvolvimento no Brasil, chamada de células de combustível, usa etanol para movimentar uma versão do carro elétrico muito mais sustentável do que os modelos movidos à bateria. No carro elétrico movido à bateria, essa mesma bateria armazena a energia elétrica que é utilizada para fazer o carro funcionar. No carro elétrico movido à etanol, a célula de combustível converte a energia química do etanol diretamente em energia elétrica (sem combustão) para fazer o carro funcionar. Com a adoção dessa tecnologia, não será necessário construir uma imensa infraestrutura elétrica totalmente nova nas estradas brasileiras para carregar as baterias dos veículos. Com a tecnologia das células de combustível, os novos veículos poderão usar toda a infraestrutura de postos de combustível já existente no país. Basta parar o carro no posto, abastecer com etanol e seguir seu caminho. O carro elétrico movido a bateria pode até ser uma alternativa viável para países pequenos com distâncias curtas e infraestrutura elétrica já montada, como os países europeus. Mas, para países como o nosso, com longas estradas, a solução das células de combustível a etanol será a solução mais inteligente, mais barata, mais rápida e com balanço zero nas emissões de carbono para a atmosfera. Além de utilizar um biocombustível produzido a partir de biomassas residuais que são abundantes por aqui.

O potencial da biomassa residual, entretanto, não se restringe à produção de etanol: o biodiesel pode ser produzido a partir de óleos vegetais, mas também a partir de óleo de cozinha usado e de gorduras animais residuais; o SAF, sigla em inglês para Combustível Sustentável de Aviação, também pode ser produzido a partir de óleos vegetais e gorduras animais e até mesmo resíduos de alimentos, enquanto o biometano, que pode ser chamado de gás natural renovável, é produzido removendo contaminantes do biogás que, por sua vez, é produzido a partir dediferentes tipos de materiais orgânicos, como dejetos de animais, restos de plantas, esgoto das cidades e restos de alimentos.

O potencial da biomassa residual como alavanca para impulsionar a indústria nacional é imenso, mas ainda existem caminhos que precisam ser trilhados. Experiências recentes na produção do etanol de segunda geração mostraram que o manuseio de diferentes tipos de biomassa precisa ser bem estudado para que esse tipo de material possa ser operado de maneira adequada em grandes fábricas. É necessário o envolvimento dos produtores do biocombustível, dos fabricantes de equipamentos e de instituições de pesquisas, além da existência de políticas públicas que estimulem, viabilizem e suportem o trabalho integrado desses diversos atores.

O uso de biomassas residuais tem tudo para transformar a agroindústria nacional em um importante vetor da transição energética. É uma enorme oportunidade para gerar riqueza a partir dos resíduos de nossa biodiversidade, sem que seja necessário desmatar florestas nativas.